Em um de seus livros mais conhecidos, José Saramago imaginava o final da vida e a morte de Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, na Lisboa de 1936, que na época mergulhava, com Salazar, no fascismo que assolaria a Europa por mais uma década, e Portugal por bem mais do que isso. Na mesma Lisboa, que atravessa, novamente junto com o resto da Europa, uma profunda crise econômica e de valores, foi-se em 23 de abril de 2011 outro Reis, o Paulo.

 

Nascido no Rio de Janeiro, Paulo residia desde 2005 em Lisboa, onde, além de ensinar e organizar exposições, criou o Carpe Diem – Arte e Pesquisa, uma instituição dedicada à produção de exposições, discussões, workshops e master classes sobre a produção artística contemporânea. Instalado no fascinante palácio do Marquês de Pombal, na Rua do Século, o Carpe Diem tem se tornado, em pouco tempo, uma referência ineludível na cidade, ponto nevrálgico de uma intensa rede de relações e intercâmbios entre Brasil, América Latina, Europa e África. Os recursos eram sempre limitados, mas Paulo e seus companheiros nunca reclamavam da luta diária para a sobrevivência do Carpe Diem, talvez por estar profundamente conscientes da importância daquilo que faziam.

 

Paulo foi curador de inúmeras mostras, algumas pequenas e cuidadas nos mínimos detalhes, outras de grande escala e que por isso mesmo deixaram uma marca, como Um oceano inteiro para nadar (Culturgest, Lisboa, 2000), Razão e Sensibilidade (Casa Cor, São Paulo, 2005), Parangolé: Fragmentos desde los 90 en Brasil, Portugal y España (Museo Pátio Herreriano, Valladolid, 2008) e mais recentemente Fiat Lux (MACUF, La Coruña, 2010) e Paralela 2010 // A Contemplação do Mundo (Liceu de Artes e Ofícios, São Paulo, 2010), para citar apenas algumas. Mas o que ele mais gostava de fazer era mesmo conversar com artistas e amigos, tecer relações, trocar experiências e conhecimentos, abrir caminhos: “Eu sou do mundo”, costumava dizer, resumindo assim o seu desprendimento, a sua dedicação total à causa da arte, e o fato de nunca guardar nada para si, devolvendo ao mundo o que dele vinha. Junto com David Barro, fundou e dirigiu até a morte a revista Dardo, que também tem se dedicado intensamente à divulgação da produção de artistas brasileiros e latino-americanos na península ibérica, e vice-versa.

 

Paulo gostava de trocadilhos e jogos de palavras. Um dos projetos que deixa, por exemplo, chama-se Boite Invaliden, redirecionando a ideia duchampiana de boîte-en-valise para a galeria Invaliden1, formada e dirigida por um grupo de artistas de várias nacionalidades, todos residentes em Berlim. E é por saber que ele gostava dos curtos-circuitos da imaginação que não se importará se alguns de nós continuarão a falar com ele, acreditando que quem morreu nesse ano de 2011 foi um homônimo do Paulo Reis, e que o “nosso” está apenas viajando, desapareceu por um tempo como às vezes fazia. De repente foi rever o Caravaggio de que tanto gostava, em San Luigi dei Francesi, em Roma, e daqui a pouco volta...

 

JACOPO CRIVELLI VISCONTI

Curador independente e crítico de arte.